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domingo, 6 de março de 2011

Pobres, jovens e reféns da moderna barbarie




Transcrevo abaixo entrevista com a Professora Maria Lucia Pinto Leal, da Universidade de Brasilia, ao Diário do Para. Maria Lucia, também conhecida como Baiana, foi candidata da esquerda a vice-reitora da UnB em 2009, depois da vitoriosa ocupação da Reitoria.

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Nicole [nome fictício] saiu aos 11 anos de casa, quando o pai a entregou para um fazendeiro. Abusada desde então, saiu dessa situação só aos 17 anos, quando entrou para a prostituição e foi embora para a Espanha. A trajetória da adolescente, hoje adulta, é um dos vários casos que povoam a pesquisa nacional que há mais de uma década tentou mapear no Brasil as rotas do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual ou de comércio. A pesquisadora baiana Maria Lúcia Pinto Leal, 51, que coordena na Universidade de Brasília (UnB) o Grupo de Pesquisa sobre Violência, Tráfico e Exploração Sexual de Crianças, Adolescentes e Mulheres, esteve à frente dos trabalhos da Pestraf - Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial -, que mapeou mais de 240 rotas de tráfico de pessoas no país.

Graduada em Serviço Social e pós-doutorada pelo Programa Pós-Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, de Portugal, Maria Lúcia Leal esteve em Belém essa semana para palestras realizadas na Universidade Federal do Pará. Ela concedeu entrevista ao DIÁRIO em conversa com os editores Lázaro Magalhães e Aline Monteiro:

P: A senhora afirma que o tráfico de pessoas é um fenômeno transnacional muito forte e lucrativo, num mercado que está apenas atrás dos comércios de drogas e armas. Que números são esses?

R: Quando coordenamos a primeira pesquisa do Brasil, e a única em âmbito nacional, sobre tráfico de mulheres e crianças e adolescentes para fins de exploração sexual, tivemos muita dificuldade de quantificar, porque é uma coisa bastante complexa que envolve a proteção às vítimas. O que conseguimos quantificar no Brasil em 2000 foram 131 rotas internacionais e 110 nacionais. Para o Norte, detectamos naquela época 45 nacionais e 35 rotas internacionais. São dados extraídos de inquéritos e processos e de informações prestadas pelas redes de enfrentamento à violência sexual em cada região brasileira. Aqui no Norte chegamos a identificar rotas para Paramaribo, Venezuela, Bolívia e Peru. Nessas fronteiras secas esse trânsito de crianças e adolescentes é muito grande. O problema é que a fronteira é uma nação totalmente distinta do Estado, do município. Ali você transita com outro tipo de organização.

Como uma adolescente atravessa uma fronteira para a Venezuela numa área onde você tem a presença de órgãos públicos como a Polícia Federal? Quando passa num táxi, no ônibus ou dentro do caminhão... como é feita essa fiscalização? Porque nenhuma criança ou adolescente pode atravessar fronteira alguma que não seja sob a responsabilidade dos pais ou de um adulto responsável que tem que ter alguma documentação para levar... Então o que há é uma contradição entre a relação de proteção e desproteção de responsabilidade do Estado, especialmente quando se trata de executar a legislação. Nós sabemos que criança e adolescente, no contexto de tráfico, é crime. E o que é o tráfico? É o recrutamento, transporte ou alojamento de pessoas sob condições de coerção, violência, sem consentimento. Para aliciar é preciso que eu tenha uma rede que me dê um respaldo. Eu preciso transportar, seja por via aérea, fluvial ou terrestre, depois preciso alojar essas pessoas em hotéis... ou seja, você utiliza o padrão formal, que não é ilícito, para fortalecer esse ato criminoso.

P: E aí se percebe como o controle é frouxo...

R: Absolutamente frágil. E quando essa menina, menino, jovem, mulher ou transexual, está sob essas condições, ele está sendo vigiado por essa rede criminosa. Então existe muita conivência, muita omissão, porque o tráfico de pessoas é um objeto rentável.

P: Há uma rede de corrupção também?

R: Há uma rede de corrupção e de exploradores que facilita o comércio de seres humanos para consolidar o tráfico nas suas diversas modalidades. Há mais de duas décadas eu estudo a exploração sexual. Percebemos que as rotas não mudaram. Só têm se ampliado de acordo com as dificuldades. Quando se fecha o cerco, aquela rota é desmontada e surge outra. Mas para uma rota se consolidar precisa ter mecanismos de escoação dessa massa humana: onde há aeroportos, portos etc.

P: Quais são essas principais rotas?

R: No caso da Europa, nós exportamos muitas mulheres, transexuais, e adolescentes, principalmente para Portugal e Espanha. Essa população sai do Centro Oeste, por Goiás, mas migra de diversos Estados, da Bahia, Tocantins... não significa que sejam goianas. Geralmente é gente das classes populares. É uma população que está em situação histórica de precarização das suas relações sociais. Pouco tiveram experiência concreta com o trabalho formal. São experiências de vida muito difíceis. Essa população em sua maioria tem uma trajetória social de violação dos direitos, tanto do Estado em relação a elas como da sociedade com elas. Sobretudo com um mercado guloso, ávaro, que precisa dessa população para extrair a sua força de trabalho das formas mais escusas e cruéis. Então o tráfico para trabalhos forçados, de órgão, de mulheres, crianças, ou para fim de exploração sexual, é uma realidade que conta uma história de toda a nossa sociedade. Tem a ver com o êxodo rural, com as urbanizações desordenadas e com projetos de desenvolvimento que não respeitam relatórios de impacto ambiental. Estou propondo uma discussão em Brasília sobre o Rima social. Temos o Rima que protege o ambiente, mas temos que ver também o impacto das relações culturais e sociais. Muitos desses grandes projetos [de desenvolvimento] carreiam milhares de homens, que carreiam outras formas de comércio, que levam à exploração, uma delas é a exploração sexual. Hoje a Polícia Federal já lista mais de tres mil rotas de exploração de crianças e adolescente em todo Brasil. Isso significa que falhou o prefeito, a escola, a saúde, a política de controle, a família... então é uma falência total

no município.

P: A política nacional de enfrentamento ao tráfico, estabelecida em 2006, supõe que se tenha uma relação integrada de políticas de saúde, de trabalho, de justiça, para fazer com que essas populações fiquem menos vulneráveis...

R: O plano nacional é bem intencionado, com ampla participação, embora sem o movimento de profissionais do sexo. Tanto que há uma crise em relação a isso. Determinada ala diz que a política criminaliza a prostituta adulta. E quando o Estado não quer resolver efetivamente a questão social, ele criminaliza a população. É uma política higienista. Quando o Estado não consegue traduzir essas necessidades de proteção social dentro da afirmação do estado forte, ele busca políticas de higienização e repressão.

P: Não é uma prática só do Brasil...

R: A Espanha tem feito isso, Portugal tem feito isso. Quando os países do Norte querem o imigrante para desenvolver sua produção em cima de mão de obra barata, as fronteiras estão abertas. Mas quando há uma crise profunda de capital como a que está acontecendo hoje na Europa, então eles se fecham a essas populações. No caso de mulheres que vão para lá para trabalhar no mercado do sexo, elas sofrem a xenofobia de várias formas, primeiro por serem latinas e depois por estarem trabalhando numa profissão de baixo status social. Embora haja leis internacionais de proteção, esse diálogo também não está muito afinado. Em alguns países da Europa a prostituição é crime, noutros não.

P: No Brasil não é?

R: Com a Constituição de 88, esperançosos estávamos de que poderíamos construir políticas públicas e sociais mais afinadas com os interesses da população. Certamente de lá para cá houve alguma alteração. A Bolsa Família conseguiu atingir essas populações? Os conselhos tutelares em todos os municípios do Brasil estão conseguindo fazer o controle das políticas públicas municipais? Quando eu fiz a matriz de minha pesquisa em 2004, quando cruzei a exploração sexual com a oferta dos problemas sociais, entendi que havia um padrão mínimo em cada município desses. O que acontece em cada município com relação ao plano nacional de combate ao tráfico? É preciso que as políticas conversem entre si. Dentro do plano, existem três eixos, a proteção, a promoção e o controle. E isto tem que ser desenvolvido pela gestões públicas. A política tem que estar preocupada mais com os direitos humanos da criança do que com o consumidor.

P: Por que o combate ao crime de tráfico de pessoas ainda não é uma prioridade?

R: A minha provocação é com as gestões públicas municipais. O que é que está acontecendo? Essas gestões públicas têm que colocar na pauta o plano nacional de enfrentamento à exploração contra crianças e adolescentes. Tem que ter gente capacitada para isso. Não é possível você colocar um prefeito que não conheça o plano nacional de enfrentamento.

P: No Pará, o índice hoje é de 85% de reprovação só das contas apresentadas ao Tribunal de Contas dos Municípios...

R: Não se constrói o município com um gestor que ignora o conhecimento técnico em favor do crescimento político. Isso é politicagem. Isso é crime. Esse cara tem que sair. Ele está fazendo um desserviço à comunidade. A sociedade tem que estar alerta para isso. A comunidade tem que participar. A grande estratégia é a participação. A maior banda da sociedade está desorganizada.

P: Qual sua avaliação da legislação brasileira. É adequada? E há avanços ou propostas de leis internacionais para conter o tráfico humano?

P: Com os dados que a pesquisa apresentou em 2006 foi impulsionada a política nacional de enfrentamento. Foi uma mobilização muito grande a articulação em âmbito internacional gerou planos bilaterais com Portugal Espanha, Paraguai, Venezuela e Bolívia. E a Lei 231 do Código Penal, que citava o tráfico internacional de mulheres para fins de prostituição, agora foi mudada. Cita o tema como tráfico internacional de pessoas. Mas ela ainda é uma lei que sofre bastante críticas do movimento de mulheres e trabalhadoras do sexo, porque elas acham que ela restringe a exploração sexual e faz uma relação direta com a prostituição. Ou seja, criminaliza a prostituição. As leis vão se modificando à medida que a sociedade vai se mobilizando. Lei nenhuma muda sozinha. Tem que ter um rebatimento, no sentido de garantir direitos do cidadão. A minha orientação é que as pessoas que estão nessa situação se organizem para participar da construção dessas leis, desses planos, desses projetos. Agora, criança e adolescente não pode ficar numa situação insalubre. Isso é inegociável. Elas têm que estar na escola e não no mercado do sexo. Têm que ter formação profissional, têm que receber cultura. Pais que vendem os corpos e almas dos próprios filhos... isso para mim é uma barbárie social. Essas vítimas [do tráfico de pessoas] estão em situação de total omissão do Estado, da sociedade e da família. Elas se seguram naquele trampolim, e quando se dão conta, caem naquela rede, que é a rede de proteção do Estado, e ela está furada. Aí quem as segura é a rede de exploradores. E isso não resulta em outra coisa senão a barbárie, a exploração sexual e até mesmo o óbito. (Diário do Pará)

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