Depois das reformas neoliberais
Por Brunna Rosa
Assim como em outras áreas de responsabilidade do poder público, a educação passou por reformas instauradas sob “recomendações” de organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Bird), em toda a América Latina nos anos 90. Os impactos dessas medidas em quatro dos países nos quais foram aplicadas – Argentina, Brasil, Chile e México – é o objeto de estudo de duas pesquisadoras, uma da área da Educação e outra da área de História.
Nora Rut Krawczyk e Vera Lucia Vieira publicaram o livro A Reforma Educacional na América Latina. Uma perspectiva histórico-sociológica (editora Xamã), para avaliar as especificidades e impactos da reforma educacional no período.
Em entrevista à Fórum, Nora Rut Krawczyk sustenta que as “recomendações” concretizaram idéias que já vinham tomando corpo desde os períodos de ditaduras militares, avançando pela desregulamentação do Estado e de suas funções perante a educação.
Fórum – O que há de comum nas reformas educacionais dos anos 90 na América Latina?
Nora Rut Krawczyk – Existem várias análises sobre o tema, mas não existia uma a respeito das especificidades das reformas educacionais em cada país latino-americano. Foi isso que motivou nossa pesquisa. Partimos do princípio de que a reforma educacional nesta região teve um processo de indução externa de organismos internacionais, em que estava embutida a idéia de que tanto os problemas quanto as soluções – e, portanto, as políticas – deveriam ser comuns e, mais que isso, homogêneas em toda a região. De fato, a reforma foi conservadora, mas as diretrizes não se transformaram em uma agenda política tal como previsto pelos organismos internacionais. Isso não se concretizou devido ao sentido histórico dos processos de reforma e às mudanças do papel do Estado em cada um deles.
[Para o estudo,] escolhemos Argentina, Chile, Brasil e México devido a sua centralidade na América Latina. Os pontos em comum são a perda do sentido da universalidade e gratuidade da educação pública, assim como da exclusividade do Estado como provedor. Porém, o redimensionamento das funções públicas é distinto em cada um dos países. Além disso, se valoriza a gestão privada em detrimento da gestão pública e ganha força a idéia de que a educação tem um poder transformador sem necessidade de outras medidas estruturais. Por fim, se estabelece a lógica de formulação de política a partir das conciliações de poucos setores da sociedade.
A principal alteração é a descentralização. No caso da Argentina, isso significou completar a provincialização, a transferência [da responsabilidade] iniciada no governo militar a todas as províncias. No caso do México, ainda que também tenha ocorrido, esse processo se deu em conjunto com um forte corporativismo vinculado a uma forma histórica de relacionamento entre Estado e sociedade mexicana.
No caso do Chile, um país unitário e não-federalista, descentralização é, de fato, a privatização subsidiada pelo Estado, iniciada na ditadura de [Augusto] Pinochet. Quanto ao Brasil, acontece o processo de municipalização que segue o modo como o sistema educacional foi conceituado historicamente, salvo na ditadura militar.
Fórum – Como essas especificidades determinaram as reformas educacionais nos países da América Latina?
Krawczyk – Gerir a educação é distribuir responsabilidade a diferentes setores da sociedade e do Estado. Então, as diferenças de concepção de espaço público interferem na concretização da reforma.
Na regulamentação propriamente dita também há diferenças. Por exemplo, na Argentina, ao passar a responsabilidade para as províncias, o financiamento passa a ser clientelista e partidário, dependente da relação entre o governo central e o da província. No caso do Brasil, há uma forte regulamentação por meio do Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério], em que se define claramente o que cada esfera de poder tem de destinar à educação. São formas muito diferentes.
A explicação para isso é o modo como se constituíram os embates políticos e econômicos na lógica de federalização de cada país. Outra questão é o discurso que justifica a abertura da educação para setores privados. Passa-se a dar responsabilidades para o mercado, para a família. O discurso oficial está vinculado às características próprias do setor privado em cada país. No caso do Brasil, o discurso foi principalmente o da responsabilidade social sobre o bem público. No Chile, era “a educação e a escola é uma empresa como qualquer outra e, portanto, o setor privado tem obrigações sobre ela”. A privatização é muito mais forte e aguda. Discursos distintos também produzem diferentes reformas educacionais. Em comum há a retirada de responsabilidade do Estado. Mas quanto menor a presença histórica do setor público, mais fácil foi convencer a sociedade dessa “corresponsabilidade”.
Fórum – No decorrer da reforma educacional, como a figura do professor foi atingida?
Krawczyk – A reforma educacional tem como centro as mudanças no interior da escola. Uma das características comuns a todos os países é a burocratização do cotidiano de cada escola, que recebe funções antes concentradas [nas secretarias de governo]. Isso significa um aumento do trabalho administrativo e da gestão financeira para os professores e para a equipe de direção. Esse aumento da responsabilidade significa que os professores têm de procurar outras fontes de recursos além do financiamento público.
Tanto para essa finalidade quanto para o financiamento público não-obrigatório, a distribuição é feita a partir de projetos que cada unidade elabora. É preciso gerar projetos sistematicamente para ter acesso a financiamento, isso produz o “ativismo institucional”, além da forte relação de competitividade entre as escolas.
Outra via de aumento de responsabilidade dos docentes são as avaliações externas. O professor passa a ser responsável pelo aprendizado dos alunos e pela melhoria dos indicadores nos rankings de avaliação. Além disso, há uma forte desvalorização da carreira do funcionalismo público, por meio da mídia e dos governos. Há uma insistência em atribuir os problemas do rendimento educacional à necessidade de desregulamentação da carreira, para incorporar o salário por desempenho, contratos sem via de concurso público etc.
E, de modo geral, não houve muitas mudanças provocadas por pressão dos docentes. Uma greve de professores nos anos 90 na Argentina foi chamada de “La carpa blanca” [A barraca branca], pois foram montadas barracas pelos professores do país inteiro em frente ao palácio do governo, na Praça de Maio. A questão central era o salário e a sociedade se solidarizou muito. Essa manifestação aconteceu porque a descentralização fragmentou a negociação salarial. Desde a década de 80 os docentes foram tentando reverter essa situação com mobilizações nacionais para discussão do Piso Salarial, que só foi instituído no Brasil, não existe nos outros países da América Latina.
Fórum – Com a ascensão de líderes mais à esquerda ao poder, como a senhora avalia a educação na América Latina?
Krawczyk – A reforma educacional, ao menos nesses quatro países, produziu mudanças estruturais importantes, vinculadas à perda do sentido do Estado como único provedor da educação. O que não estava claro era qual seria o papel do Estado.
Esse é o ponto de partida dos governos que você citou. Não desconstroem o que ocorreu na década de 90, mas tentam “regulamentar a desregulamentação”. Em outras palavras, tentam deixar claro como vão ser distribuídas as responsabilidades de cada instância em um novo modelo de gestão pública da educação. É uma forma diferente do que se propunha nas décadas de 80 e de 90, mas com resquícios fortes.
No caso do Chile, por exemplo, a lógica de financiamento é totalmente distinta. Os docentes têm seus salários baseados em desempenho desde a época de Pinochet. Ainda que existam políticas comuns a todos os professores, o sistema está privatizado e os salários sofrem diferenças devido às instituições escolares. A tensão de setores que querem desregulamentação maior é muito forte.
No México, desde a década de 90, o PAN [Partido Acción Nacional] se tornou hegemônico, porém a reforma demora a se consolidar justamente pela resistência dos docentes. Então [Vicente] Fox assume o governo em 2001 e de fato se dá a reforma neoliberal.
No Brasil, o que faz o governo Lula, principalmente na segunda gestão, com o [Fernando] Haddad, é reformular algumas funções da União, vinculadas a garantir organicidade ao conjunto da educação. Tenta-se construir novas funções, mas nada no sentido de voltar à idéia do Estado como o único provedor de recursos.
Fórum – Isso quer dizer que a idéia de Estado como único responsável pela educação é ultrapassada?
Krawczyk – Não, pelo contrário. O sistema capitalista tem como uma de suas características estruturais a desigualdade e só o Estado pode impedir que ela cresça sob o ritmo dos interesses do capital. O melhor exemplo é o que está acontecendo agora com a crise financeira e a atuação do Estado, o único ator social que pode se contrapor, por mais que esteja permeado pela própria lógica do capitalismo. Mas é apenas nesse âmbito que se dá a luta por projetos distintos, porque no mercado não há espaço de disputa de projetos sociais distintos. Quando se reduz o espaço público, se diminui a possibilidade da disputa política, social e econômica. Uma reformulação de política nesse contexto é resultado da negociação e conciliação de alguns setores da sociedade, porque é muito mais fácil negociar com um segmento do que com a sociedade como um todo. E negociar quer dizer lutar por espaços de poder.
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