Prof. Luiz Henrique Schuch
Surpreendentemente, apesar de ter-se desenvolvido sob as asas de um Estado tipicamente patrimonialista, a jovem universidade brasileira, forjada há menos de um século, produziu, a partir do seu interior, considerável consciência da função eminentemente pública que deve desempenhar. Nisto, aproximou-se da trajetória que já vinha sendo traçada há mais tempo em outros países latino-americanos e das melhores tradições do pensamento humanista.
Segundo sociólogo Francisco de Oliveira, em palestra proferida na abertura do 6º Conselho Extraordinário do ANDES sindicato nacional – CONAD, realizado em Brasília, no mês de agosto de 2005, o surgimento desta consciência procedeu-se quase como um milagre e significa um escândalo aos olhos da elite político-econômica brasileira, ainda tão condicionada a uma relação do tipo colonial frente aos interesses e modelos impostos de fora.
Por isso, não é casual surgirem em todos os períodos históricos abertos à expansão do ensino superior brasileiro avaliações produzidas alhures – imediatamente repetidas por membros da burocracia nacional – que localizam a raiz das mazelas das universidades públicas naquilo que consideram ser o seu descompasso em relação às conveniências empresarias.
Tanto na década de 60, sob a vigência do acordo MEC/USAID, como na década de 90, nos documentos vindos dos grupos de economistas de Chicago e do Banco Mundial, foram formuladas engenhosas construções retóricas para justificar que “os muros das universidades deveriam ser derrubados” não para responder às indagações do povo brasileiro nem para ajudar a resolver os seus problemas fundamentais, mas como disfarce da intenção de conquistar o seu atrelamento instrumental aos interesses estratégicos dos negócios.
Recentemente, a mesma coisa volta a se repetir, agora com outras artimanhas, em decorrência do processo de internacionalização do chamado setor de serviços, transformado na “bola da vez” da expansão das possibilidades de lucro fácil mundo afora. A partir dele, são determinados novos contornos na distribuição internacional do trabalho e a sua conseqüência: novas exigências impostas aos sistemas nacionais de ensino, reservando, mais uma vez, posição subalterna a países como o Brasil.
As políticas educacionais preponderantes nesses períodos resultaram em perda de qualidade social do ensino superior, em precarização do trabalho docente, em ampliação do setor privado e ampliação da privatização por dentro do setor público, apesar de todas as lutas desenvolvidas pela comunidade universitária. A privatização por dentro do setor público sempre esteve associada à tentativa de transferir a pesquisa e a educação do âmbito da esfera pública para o regime fundacional. Na década de 60, a via empreendida foi o registro das próprias universidades públicas com o estatuto de fundações. Mas, como os dois regimes, autárquico e fundacional, foram praticamente igualados pela Constituição de 88, a privatização por dentro das instituições passou a trilhar uma via paralela: a transferência de atividades e funções das universidades para fundações inteiramente privadas, chamadas eufemisticamente de fundações de apoio.
Não existe, por maiores que sejam as demandas acadêmicas, nenhum argumento capaz de legitimar a necessidade de fundações privadas em uma universidade pública. Criadas com o pretexto de contornar dificuldades de natureza administrativa e entraves legais, elas acabaram por gerar enormes distorções nas atividades de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas na universidade, submetendo-as à lógica do mercado. Lógica essa da qual derivam prioridades incompatíveis com a atividade acadêmica crítica e socialmente referenciada, que é a essência da universidade pública.
Diante do descaso dos governos com o financiamento das universidades públicas e das dificuldades administrativas, os burocratas têm incentivado e tirado proveito da fuga pela via paralela, privatizante e ilegal, pelo desvio de caráter acadêmico, imprimido pelas fundações. No sentido inverso, o equacionamento daquelas dificuldades só terá sucesso com o fortalecimento do caráter público da universidade, da sua autonomia e da sua democracia, pois é esta a razão que lhe tem garantido sustentação social desde quando e onde existem universidades como as que conhecemos.
Desvio de caráter, no caso, não se refere ao componente moral, mas às características essenciais da instituição universitária, em particular aquelas que justificam o atributo da autonomia.
Pelo menos, dois pólos externos vêm atuando no sentido de tirar proveito particular do patrimônio social representado pelas universidades públicas. Por um lado, governantes tentam reduzi-las a meras repartições, obrigadas a cumprir caprichos e acordos imediatistas, muitas vezes, condicionados aos períodos de governo e aos interesses eleitorais. Por outro, setores econômicos operam a des-instituição do espaço público destinado à produção de conhecimento para transformá-lo em mais um campo dos seus empreendimentos. Ambos incorporam em suas táticas a transferência de funções das universidades públicas para as fundações privadas. Somente a existência desses interesses externos é capaz de explicar o acobertamento das afrontas à Constituição e a neutralização dos efeitos de tantas condenações dos Tribunais de Contas, apontamentos de irregularidades das controladorias, denúncias do Ministério Público e das comunidades universitárias.
As fundações privadas ditas de apoio nada mais são do que entes privados intermediando a relação financeira entre órgãos públicos, evadindo-se dos controles e imprimindo, a partir dessa interposição, o interesse subjetivo, particular, nas decisões que, nesse caso, deveriam ser da esfera pública. Ferem, estruturalmente, o princípio da legalidade que é uma das diretrizes básicas na conduta dos agentes públicos. Tal princípio tem origem histórica próxima à criação do Estado de Direito, consagrado por séculos de evolução política e é uma das cláusulas fundamentais da Constituição brasileira. A lição dos juristas Ely Lopes Meirelles e José dos Santos Carvalho Filho é sintética e suficiente a respeito do tema: “Na administração pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe”. Além disso, a moralidade administrativa, que ultrapassa o princípio da legalidade, segundo os mesmos autores “não é meramente subjetiva, porque não é puramente formal, porque tem conteúdo jurídico a partir de regras e princípios da Administração”, distinguindo-se também da esfera do que é privado.
Como seria possível, então, de boa fé, imaginar que a melhoria da regulamentação, ou o aperfeiçoamento de sistemas de controle, garantiriam resultados positivos ante a promiscuidade parasitária entre a esfera pública e a privada, estruturalmente operada entre as universidades Públicas e as fundações privadas ditas de apoio? Na prática, a soma de umas poucas vontades e interesses pessoais decide, discretamente, mas com grande poder, as operações desenvolvidas pelas fundações privadas, apesar de atuarem com recursos públicos e no espaço que deveria ser público. O que se identifica, claramente, nas tentativas de estabelecer pontes administrativas entre as fundações privadas e as universidades públicas, além da ilegalidade, é que estas servem muito mais para que os interesses privados nelas organizados controlem as universidades por meio do poder econômico do que para o estabelecimento de tutela pública sobre as fundações.
Somente para citar alguns dos casos que mais repercutiram na imprensa, note-se que meses antes de sair algemado durante a operação RODAN da polícia federal, juntamente com outros dirigentes universitários, um dos conselheiros que também era dirigente da fundação privada de apoio levou “em baixo do braço”, para relatar na reunião do Conselho Universitário da Universidade Federal de Santa Maria, o processo que deveria chancelar as contas da FATEC. Vários conselheiros protestaram denunciando evidente conflito de interesses, mas as contas acabaram sendo aprovadas, assim mesmo, em uma reunião subseqüente.
A crise que levou à exoneração do reitor da UNB, cujo emblema foi a lixeira adquirida pela FINATEC, já exaustivamente debatida e denunciada, revelou de forma maiúscula não só até onde pode chegar o arbítrio subjetivo na aplicação do dinheiro público quando gerido na lógica de uma instituição privada, mas também como, em pouco tempo, consolidou-se uma cunha de poder a partir da fundação a controlar o funcionamento da intuição pública que deveria ser apoiada. O rodízio estabelecido nos cargos de mando financeiro da universidade e da fundação, nos últimos quinze anos, de um núcleo de poucos nomes, e o controle que passaram a exercer, estabeleceu uma situação na qual dificilmente alguém chegaria ao cargo de reitor sem o beneplácito desse núcleo, mesmo que processos eleitorais viessem a ser promovidos.
Uma lição importante recolhida da experiência recente é a relação entre nível de promiscuidade da rés-pública com organismos privados patrocinadas por determinadas reitorias na administração das universidades e nível de autoritarismo no exercício dos seus mandatos. Ao crescimento das denúncias, ao vazamento de evidências das falcatruas com dinheiro público, aos sinais de manipulação dos órgãos superiores das universidades os gabinetes se fecham em comportamento despótico e passam a criminalizar o simples direito de divergir, reprimindo com violência, como se divergir fosse elemento estranho ao ambiente acadêmico. Percebe-se uma perniciosa e crescente mudança de sentido no exercício do poder institucional, praticado cada vez mais ostensivamente de cima para baixo e relegando tarefa apenas homologatória aos conselhos e colegiados.
Muitos anos de denúncias emanadas do movimento docente, dos estudantes e dos funcionários não sensibilizaram o reitor, fechado em sua cidadela que parecia inexpugnável, na Universidade Federal de São Paulo, a antiga Paulista de Medicina, até que as ilegalidades apontadas pelos órgãos de fiscalização, a maioria vinculadas às fundações privadas, foram publicadas com destaque em jornais de grande circulação nacional. Aquele que até a véspera usava mão-de-ferro para reprimir quem não lhe atendesse as conveniências foi forçado a pedir demissão, juntamente com todo o gabinete, e responde a vários processos.
Os exemplos generalizam-se de norte a sul do país. Citá-los restringe-se simplesmente à necessidade de destacar algum aspecto específico, pois parece que a única diferença é o momento em que as máculas vieram ou virão a tona, quanto à perniciosa relação das universidades públicas com as suas fundações privadas ditas de apoio. O quadro é nítido e desfaz, por si, qualquer possibilidade de buscar aperfeiçoamentos daquela relação gerada como uma aberração incorrigível. Caberá às próprias universidades públicas, em primeiro lugar reacender a força de sua mobilização interna e, em decorrência disso, pressionando as administrações, retomar o papel que paulatinamente foi delegado às fundações privadas.
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