28/2/2012 Le Monde Diplomatique Brasil Todos se lembrarão do papel central que a temática do aborto teve durante as eleições presidenciais e de como a então candidata Dilma comprometeu-se publicamente perante todas as Igrejas, especialmente católica e evangélicas, a levar adiante uma gestão que “defenderia a vida” Foi-se o tempo em que era prazeroso ser brasileira e participar de debates, seminários e reuniões internacionais que versassem sobre os direitos reprodutivos no Brasil. Foi assim durante as conferências internacionais das Nações Unidas, na década de 1990, quando o Brasil exibia um currículo construído com distinção, num processo de interlocução entre Estado e movimentos sociais, e que permitia exibir uma folha de serviços invejável à sociedade. Ganhava destaque a adoção do Paism (Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher), o serviço de aborto legal, assim como debates públicos consistentes sobre o direito das mulheres à informação e acesso à contracepção e sua regulação, antecipando uma enorme mudança de paradigma na formação e assistência prestada por profissionais de saúde. Muitas conquistas foram realizadas, com enorme ênfase nos processos de participação social. Agora, que se iniciam os processos de revisão +20 das Conferências Internacionais, o que o Brasil terá a dizer sobre sua atuação nos últimos anos? Naquele período, embora fossem reconhecidas a força e a presença dos grupos conservadores, dadas pela própria inserção do Vaticano no conjunto de nações representadas na Assembleia das Nações Unidas, ainda havia espaço para a interlocução independente com o Estado brasileiro. Não há dúvidas de que este é o nó górdio que se abre atualmente para o enfrentamento da agenda de direitos sexuais e reprodutivos na América Latina e globalmente: a barreira criada pela entrada das forças religiosas no campo do Estado. No entanto, no caso do Brasil, essa porta aberta vem fazendo que a agenda brasileira de saúde e direitos reprodutivos embarque em um retrocesso inaceitável, haja vista nossa história pregressa. Diálogo com as Igrejas, sim, mas diálogo não significa submissão. Por que rezar justamente essa cartilha? O crescimento do conservadorismo no Brasil e no mundo, nessa matéria, tem sido alvo de inúmeros debates e discussões,1 havendo relativo consenso de que o cenário de fortes mudanças que ocorreram nas sociedades ocidentais desde a década de 1960 geraria uma reaçãode igual intensidade e sentido oposto. Como se sabe, tal processo questionou posições aparentemente cristalizadas de valores e subjetividades e colocou as liberdades individuais no centro das posições de transformação. O peso das religiões na determinação de valores, condutas e comportamentos passou a ser relativizado. A reação a esse processo de intensa transformação cultural parece se estruturar na forma de um retorno a valores tradicionais.2 Nessa iniciativa, o próprio Vaticano emerge como ator central e se dedica a olhar e atuar de maneira importante sobre a América Latina, uma região que aglutina um conjunto quantitativamente importante de católicos. Nos últimos quinze anos, o continente vem sofrendo grandes transformações, com a eleição de governantes de esquerda, o que poderia ser compreendido como um risco à manutenção da presença de valores religiosos nas culturas locais. Em relação ao que esse setor conservador considera uma ameaça, ele vem atuando com uma política de produção e absorção de recursos humanos qualificados e estrategicamente situados, defensores de propostas específicas, seja por meio de enunciados de leis, seja por argumentos usados para a criação de barreiras a medicamentos e regulações na América Latina, incluindo o Brasil. Momentos eleitorais têm sido períodos de fragilidade para o campo dos direitos reprodutivos em toda a América Latina. Nesses processos, as Igrejas pressionam forças políticas de esquerda usando de suas tribunas para tentar impedir o voto em candidatos comprometidos com o campo dos direitos sexuais e reprodutivos. Nicarágua, Uruguai, Argentina, Chile e República Dominicana são exemplos. No Brasil, nas últimas eleições majoritárias, a situação foi tragicamente similar. Todos se lembrarão do papel central que a temática do aborto teve durante as eleições presidenciais e de como a então candidata Dilma comprometeu-se publicamente perante todas as Igrejas, especialmente católica e evangélicas, a levar adiante uma gestão que “defenderia a vida”. Em agosto de 2010, o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, publicou no jornal O Estado de S. Paulo uma matéria assinada que revelava a perspectiva e a plataforma com que a Igreja Católica, liderando os grupos conservadores, vinha trabalhando no Brasil. O texto de D. Odilo é claríssimo e explicita o que podem ter sido as conversações de 2010: a ênfase sobre temas do campo da família e a retomada de questões associadas ao direito à saúde das mulheres de uma perspectiva materno-infantil − apoio total à maternidade, fechamento de clínicas clandestinas de aborto com punição dos responsáveis, críticas ao planejamento familiar, chamado à responsabilidade do pai biológico e cumprimento da lei em vigor no que se refere à proteção e à defesa da mãe e do “filho” ainda por nascer. Visto assim, de relance, para os mais distraídos, poderia parecer difícil discordar dessa agenda da Igreja Católica. No entanto, desde a segunda gestão Lula, tem-se criado, na área da saúde, um ambiente hostil ao discurso de emancipação das mulheres, de valorização de posturas que foram caras ao movimento de mulheres nacional e internacionalmente. À época, infelizmente, o movimento feminista preferiu, de maneira geral, apostar no jogo eleitoral, não incrementando o debate público sobre os direitos reprodutivos, deixando de lado uma de suas questões mais caras, o direito ao aborto, em nome da futura eleição da presidente Dilma Rousseff. O movimento feminista pagou caro, uma vez mais. O feminismo nunca deixou de valorizar a maternidade e a família. Ele buscou incluir nesse cenário os direitos humanos de todos, independentemente de cor, raça, classe social, orientação sexual, gênero ou idade, promoveu o respeito a suas opções, ressaltando como direito a autonomia e o poder de decidir das pessoas, especialmente em suas práticas sexuais e reprodutivas. Assim, o pré-natal é importante, sim, mas poder decidir sobre a gravidez também o é, o que se traduz no acesso à contracepção e ao aborto. Lembro perfeitamente, ainda na década de 1980, que na condição de representantes do Conselho Estadual da Condição Feminina e acompanhadas de grupos da sociedade civil, discutíamos com o secretário de Saúde – à época João Yunes – que os centros de saúde só faziam o pré-natal e não viam as mulheres em sua integralidade, em todas as suas necessidades de saúde e em todas as etapas de sua vida. Essa era a diferença do Brasil com outros países da América Latina. Durante as conferências das Nações Unidas, na década de 1990, já tínhamos percorrido um extenso caminho de debate social e político, que permitia promover políticas públicas inclusivas e integradoras, de amplo espectro, e mostrava às agências de cooperação internacional qual era o caminho a seguir. Na verdade, o Brasil foi um parâmetro para toda a América Latina em se tratando de saúde das mulheres. A segunda gestão do presidente Lula e, agora, os passos de nossa presidente vêm mostrando que os governos que internacionalmente levam a fama de mais democráticos são aqueles que têm gerado mais dificuldades para a defesa da agenda dos movimentos de mulheres. Como mostrar isso ao mundo? Como dizer que a presidente Dilma, apesar de altos níveis de aprovação pela opinião pública, de ser mulher e de ter falado em saúde da mulher em seu discurso perante as Nações Unidas, traz nas entrelinhas de sua gestão um enorme acordo com a Igreja Católica? Os sinais são claros desde Lula: a entrada maciça da educação religiosa nas escolas; os problemas com a contracepção de emergência; a assinatura do Termo de Acordo entre Brasil e Vaticano; a relutância em enfrentar o debate sobre o aborto no Congresso Nacional; a crise gerada em torno do Programa Nacional de Direitos Humanos em suas colocações sobre a autonomia das mulheres; a falta de priorização da votação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)n. 54, no Supremo Tribunal Federal, que trata da antecipação do parto nos casos de anencefalia; as barreiras de informação e acesso ao uso do misoprostol, um medicamento altamente eficaz em ginecologia e obstetrícia, mas que, por seus efeitos abortivos, sofre impedimentos de toda ordem. E chegamos até o programa Rede-Cegonha e finalmente à recente Medida Provisória (MP) n. 557, de 26 de dezembro de 2011. A paciência acabou. Dessa vez, com a MP n. 557, o governo da presidente Dilma realmente se excedeu. Com o objetivo de reduzir a mortalidade materna, sem disfarces, pretendeu vender à sociedade aquilo que seriam os “direitos do nascituro”. Em texto que passa a valer a partir do momento de sua publicação e que só pode ser retirado de tramitação no Congresso Nacional pela própria presidente, a MP, além de alterar a lei que organiza o sistema de saúde para introduzir os direitos do nascituro, estabelece a necessidade de um cadastro de gestantes que obriga a identificação das mulheres grávidas e propõe um Comitê Gestor Nacional, sem qualquer participação da sociedade civil, e Comissões de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento de Gestantes e Puérperas de Risco, desconhecendo estruturas já existentes no sistema de saúde e que poderiam ser melhoradas. Essa MP possibilita a invasão de privacidade daquelas que eventualmente desejem abandonar o caminho da gestação e parto, optando por um aborto. Além disso, cria o auxílio de R$ 50 para o transporte das que têm dificuldade financeira, escamoteando o real problema da mortalidade materna no Brasil, que é a qualidade da atenção ao parto. Do abortamento inseguro como causa da morbimortalidade materna, nem sinal. Inúmeras têm sido as manifestações da sociedade civil contrárias à MP: Central Única dos Trabalhadores (CUT), Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos, Articulação de Mulheres Brasileiras, médicos da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), membros da Comissão de Cidadania e Reprodução, Observatório de Sexualidade e Política, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco). E agora, Brasil? A Argentina caminha de um país de Menem na época da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento no Cairo, em 1994, de total apoio às iniciativas da Igreja Católica, para um processo de maior debate público, com a inserção de um volume maior de atores sociais, com propostas mais ousadas. Foi assim que, em 2011, na Argentina, uma coalizão de grupos de mulheres insistiu em promover um debate público de propostas de projetos de lei. O aborto é proibido por lei na Argentina, salvo em casos de risco para a vida da mãe ou abuso de mulher incapacitada. Nesse segundo caso, no entanto, a decisão costuma ser da Justiça, aspecto que já vem sendo problematizado por juristas e profissionais da saúde. Embora não tenha sido possível chegar à análise de projetos de lei pela Câmara dos Deputados, chegou-se bem perto disso. No caso do Brasil, ocorreu o contrário. Um esforço enorme vem sendo despendido pelos movimentos sociais para tratar de segurar projetos de lei que, se aprovados, fariam retroceder o que já existe em nosso Código Penal, ou seja, a possibilidade de abortar nos casos em que a gravidez é resultado de um estupro ou quando a mulher grávida corre risco de vida. No Uruguai, superando o veto que o ex-presidente socialista Tabaré Vasquez deu à lei que descriminalizaria o aborto, em 2008, o atual Senado uruguaio voltou a debater e aprovou a lei que, se também for aprovada pela Câmara dos Deputados, será sancionada pelo atual presidente, conforme já anunciado publicamente. O projeto de lei estabelece que “toda mulher maior de idade tem direito a decidir sobre a interrupção voluntária de sua gravidez durante as primeiras doze semanas do processo de gestação”. Tal período de três meses não é levado em conta se a gravidez for resultado de estupro, se a saúde ou a vida da mulher estiverem em risco e se existir má-formação grave do feto, incompatível com a vida extrauterina. Na Colômbia, até 2006, o Código Penal punia o aborto de maneira absoluta, mas, mediante uma arguição de inconstitucionalidade e promoção de intenso debate público, as três causas que acabamos de citar passaram a ser aceitas para a realização de um aborto, com apoio de acadêmicos, associações médicas, religiosos, grupos de direitos humanos, entre outros. Mas foi finalmente na capital do México que se obteve a maior inflexão legal. A partir de 2007, no Distrito Federal do México, o aborto deixou de ser penalizado quando realizado até a 12ª semana de gestação, o que criou um precedente na América Latina até então inimaginável. Com mais de 40 mil abortos realizados pelos catorze centros de referência estabelecidos, usando também o misoprostol, medicamento sobre o qual em tese nem se podem difundir informações no Brasil, o DF do México passou a ser um paradigma para todos os países em termos de execução de políticas públicas inovadoras para a saúde da mulher. Ao contrário do DF mexicano, o Brasil, que em 1988 elegeu a primeira mulher prefeita da cidade de São Paulo e estabeleceu o primeiro serviço de aborto legal latino-americano, anda devagar. Anda de marcha a ré em relação aos direitos reprodutivos. O estabelecimento da MP n. 557 para tentar reduzir a mortalidade materna, mas que na verdade serve para pavimentar direitos do nascituro, é, no mínimo, surpreendente. Reconhecer erros, como acaba de ser feito pela presidente Dilma, pode ser mais benéfico na construção de um leque de alianças amplo, do qual mulheres ativistas, acadêmicas e trabalhadoras também façam parte. Mas, a retirada da MP é fundamental se quisermos dizer no Rio+20, em Cairo+20 e em Beijing+20 que o Brasil tem cumprido seus acordos e promessas nacionais e internacionais, gerados na década de 1990. E, principalmente, compatibilizar políticas e direitos humanos de todas as cidadãs, independentemente de credo, raça, classe social, orientação sexual e gênero. É o que se espera deste Brasil emergente. Para onde vamos, presidente Dilma? |